Preparação de obra

A preparação de obra

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A preparação de obra pode ser vista como a fronteira entre o projeto e a obra. É aqui que os projetistas passam, de alguma forma, o testemunho ao construtor, prosseguindo este com a execução em obra.

Ora, já que estamos a falar de estafetas e testemunhos, é de elementar bom senso que a passagem de testemunho seja muito bem ponderada. Não é por acaso que esta passagem é alvo de treino intenso por equipas de estafetas – largar o testemunho demasiado cedo faz com que caia no chão, largar demasiado tarde faz com que a corrida (obra) não possa prosseguir.

Apesar de ser um tema que afeta todas as obras e projetos, são muito comuns os desentendimentos que daqui resultam. Uns acham que a função da preparação é uma coisa, outros acham que é outra, e a passagem do testemunho é sempre atribulada e muitas vezes mal feita.

Em jeito de desabafo, refira-se que este é mais um dos temas em que sinto que a indústria deixou de pensar sobre si própria. Como é possível que uma função tão importante em todas as obras continue a dar azo a tanto mal-entendido e não seja algo de discussão séria?!

Lancemos então as bases da discussão. 

Começando pelo princípio, importa colocar uma questão: mas afinal qual é a função da preparação de obra?

Qual a função da preparação de obra?

Penso que não há bem “uma função”. Podem ser muitas.

Refiro algumas, começando pelo que é intrínseco à obra e prosseguindo para terrenos mais perto do projeto:

Processo interno do construtor

Numa primeira análise, a preparação de obra é o meio pelo qual o construtor prepara os trabalhos para que as equipas os possam executar (eu sei, fui redundante, mas acompanhem-me mais um pouco…).

Um projeto, tal como é emitido pelos projetistas, não pode ser simplesmente enviado para os executantes em obra, tem de ser digerido.

Alguns exemplos: 

  • Quem marca os roços de eletricidade é o eletricista, mas o projeto de instalações eléctricas não tem toda a informação necessária para tal. É preciso analisar a arquitetura, alguns elementos de detalhe como sejam carpintarias ou equipamentos, outras infraestruturas que existam na mesma parede e têm de estar alinhados (e.g. comandos de AVAC), etc.
  • O projeto de AVAC não tem informação detalhada sobre os tectos, sendo que a encomenda e implantação de grelhas, difusores e equipamentos necessita de ter em consideração a pormenorização dos tetos para que possa ser bem feita. 
  • O mesmo se aplica para encomendas de materiais ou atividades, cuja definição poderá necessitar de consulta de vários elementos.

É assim necessário recolher informação em todos os elementos de projeto e colocá-la no formato que quem vai para a frente de obra consiga implementar e executar.

Esta acepção da preparação de obra considera, em boa parte, que a preparação de obra é uma ferramenta interna da obra, que serve acima de tudo a produção, não serve o projetista.

Não me parece que haja muita gente a contestar que este é o papel fundamental da preparação de obra. A dúvida será se este é o único papel da preparação de obra.

Continuemos, então.

Ajuste à realidade

Outra das funções da preparação de obra será o ajuste do projeto à realidade, particularmente relevante em obras de reabilitação ou sobre edificações existentes.

As bases de projeto nunca são uma representação exata da realidade. Os alinhamentos e esquadrias são assumidos como certos, não existe detalhe sobre todos os elementos construídos e por aí fora.

Será assim necessário, antes da execução propriamente dita, avaliar em obra estas dimensões e fazer os necessários ajustes aos elementos a construir.

Qual a função da preparação de obra a este nível? Esta já será, provavelmente, menos consensual.

Uma visão possível é que a preparação de obra tem de retificar o levantamento e avaliar o seu impacto no projeto. Mas quem terá de fazer os acertos ao projeto? Deverá ser o construtor ou o projetista? A resposta começa a não ser tão óbvia. 

Uma solução razoável será pedir ao projetista para estabelecer uma regra geral, que depois o construtor aplica caso-a-caso. 

Por exemplo a remodelação de quartos de hotel, em que nem todos os roupeiros existentes têm exatamente os 2,10m que o projeto refere, mas em que o projetista consegue definir como absorver acertos de até 5cm ou 10cm.

Aqui, caso o acerto seja maior do que a regra que o projetista estabeleceu, já o desenho deveria ser resolvido por este, e não pela obra.

Mas será legítimo pedir ao empreiteiro para fazer a adaptação do projeto, quando não há um critério claro de projeto, para ser aprovado pelo projetista? Alguém me disse um dia numa Tertúlia Alphalink que se um desenho de preparação tem de ser aprovado pelo projetista significa que deveria ter sido feito por ele. É um argumento forte, tenho de admitir.

Temos então esta segunda função – adaptar à realidade – que tem uma parte que penso ser consensual (a preparação de obra validar as condições no local e avaliar se tem implicações no projeto) e outra mais discutível (quem tem de fazer os acertos de projeto necessários).

Mas continuemos, que ainda temos muita coisa pela frente…

Ajuste à realidade, mas agora mais forte

Há todo um conjunto de ajustes que foram uma categoria por si só: quando pretendemos reaproveitar instalações elétricas, AVAC e outras em obras de reabilitação.

A fronteira entre o projeto e a obra esbate-se completamente. Será legítimo pedir ao projetista que faça o levantamento de todos os circuitos de um quadro elétrico com vista a definir a adaptação necessária com o detalhe que se vê no projeto de uma instalação nova? E de uma rede hidráulica ou aeráulica, incluíndo todas as válvulas e registos?

Se parece excessivo exigir isto ao projetista, fará sentido exigir ao empreiteiro? E como é que se define o preço, se não sabemos de antemão como vai ser a rede elétrica?

Tenho muitas dúvidas sobre o papel da preparação de obra em casos como estes, e sobre o que é legítimo exigir ao projeto e obra. Na verdade, o que resulta daqui é que há um custo associado ao reaproveitamento de instalações que normalmente não se avalia – o custo das equipas técnicas a avaliar o existente e planear a sua adaptação.

A única forma de resolver estes casos é tornar explícito o que se está a contratar à obra, que deverá inclui um serviço de levantamento, análise e adaptação. É também importante estarmos conscientes que poderão decorrer daqui variações de preço, e idealmente estabelecemos os mecanismos que as permitam avaliar e gerir no modelo contratual da obra.

Desenvolver pormenores de execução com base em pormenores-tipo

Isto pode-se aplicar a muitas coisas: carpintarias, serralharias, cantarias, estruturas metálicas e muito mais.

Vamos tomar o exemplo das estruturas metálicas. É comum haver uma pormenorização genérica das ligações, que deverá ser aprofundada e detalhada para cada caso específico pela preparação de obra. Esta tem de ter em consideração os espaços para trabalhar e conseguir montar, os inúmeros casos particulares de ligações e tudo o mais.

Será legítimo exigir à preparação de obra o desenvolvimento deste tipo de detalhe? será que isso faz sentido quando a tipificação está bem feita e o executante consegue detalhar sem necessidade de validação do projetista? E se forem necessários pormenores não tipificados que têm de ser aprovados pelo projetista?

Pois, a responsabilidade da preparação de obra vai ficando cada vez mais difusa.

Mas continuemos, que ainda temos vários desafios pela frente.

A pormenorização que o projetista não consegue fazer, mas a obra sim

Há muitos casos em que o projetista não consegue detalhar algo mas a obra sim. Seja por não estar ainda estabilizada a solução a instalar (por exemplo algo que dependa do fabricante/série de alumínio a aplicar) seja por o projetista não ter o conhecimento técnico suficiente para o fazer (e.g. fachadas técnicas, carpintaria elaboradas ou outros elementos).

Note-se que não estou a criticar a falta de conhecimento técnico dos projetistas. Apenas constato que cada vez os sistemas construtivos são mais técnicos e específicos, e muitas vezes apenas o fabricante ou instalador domina verdadeiramente o assunto e tem capacidade de preconizar a forma de executar. Não é razoável exigir que qualquer projetista saiba tudo sobre tudo.

E como ficamos então nestes casos? Será legítimo exigir à obra que detalhe aquilo que o projetista não conseguiu? E como conseguimos determinar quais são os casos em que isto faz sentido e os casos em que não?

Se reconheço que é legítimo exigir à obra alguma pormenorização técnica que o projetista não conseguiu fazer, tenho imensa dificuldade em estabelecer as regras e critérios que devem reger esta exigência.

Mas, como se costuma dizer, o primeiro passo para resolver um problema é reconhecer que existe.

Detalhar algo que não foi pensado em projeto ou que se quer reavaliar

Se no ponto anterior o que estava em causa eram temas que o projetista manifestamente não tem (nem é exigível que tenha) capacidade técnica ou informação para detalhar, agora falo de coisas que podem e devem estar pensadas em projeto, mas que são remetidas para a obra.

Um exemplo muito comum é a famigerada planta de tetos. 

É comum exigir à preparação de obra que prepare uma planta de tectos, para ver como funcionam em conjunto os tetos, iluminação, grelhas, detetores e toda a demais parafernália de coisas que populam os nossos tetos nos dias que correm. E desta planta resultam conversas que têm muito pouco a ver com a obra, mas muito a ver com o projeto. Temos de rever a implantação das grelhas, para ficar alinhada com os pilares; temos de rever a localização dos detetores, que ali são muito visíveis e ficam feios. Por vezes ainda pior: eu estava à espera da preparação dos tetos para estudar como queria arrumar a iluminação.

Já assisti a discussões em obra em que se exige ao empreiteiro a recolocação de uma esteira de teto a suas expensas, sendo que esta estava exatamente onde assinalada no projeto. Argumentava o projetista que estava à espera de ver a planta de tetos para pensar onde queria colocar a dita esteira.

Compatibilização do projeto

Há quem considere que a preparação de obra deverá verificar e compatibilizar os projetos. 

Fará sentido? Analisemos o tema.

Para início de conversa, e para que não haja dúvida, considero que desenvolver um projeto compatibilizado é responsabilidade de cada projetista (leia-se este artigo a propósito da onde defendo que compatibilizar um projeto não é uma ação e este outro, em que abordo o desafio de desenvolver projetos compatibilizados). 

Note-se que não digo “a responsabilidade de compatibilizar”, digo sim “a responsabilidade de desenvolver um projeto compatibilizado”. A diferença, parecendo que é um detalhe, é brutal: o conceito de compatibilizar um projeto remete para algo que acontece depois de o projeto estar feito, como se não fosse responsabilidade de cada projetista conceber uma instalação de forma compatível com o todo. Compatibilizar remete para algo que é extra-projeto, e que é feito posteriormente por uma qualquer entidade, não sendo responsabilidade dos projetistas.

Rejeito esta visão em absoluto: cada projetista é responsável por assegurar que o seu projeto é compatível com o todo e com todos os outros, e fazer essa verificação na entrega do projeto.

Assim sendo, a obra nunca poderá ser responsável por compatibilizar um projeto, pois isso é um ato de projeto. Pode, quando muito, ser responsável por verificar a compatibilização. Neste caso surge a questão da responsabilidade por resolver as incompatibilidades eventualmente detetadas.

Fará sentido dizer que a obra é responsável por verificar a compatibilidade dos projetos? E que é responsável por resolver as incompatibilidades? E se esta resolução implicar, o que acontece muitas vezes, uma revisão profunda de redes, condutas, couretes e outros elementos? Não é isso um ato de projeto da responsabilidade dos projetistas?

A preparação de obra enquanto revisão de projeto

Finalmente temos a posição mais estremada, em que se atribui à preparação de obra a responsabilidade por rever o projeto. Aqui não se trata apenas da compatibilização, mas também da revisão técnica de cada projeto.

Nesta acepção do termo atribui-se à preparação de obra a responsabilidade de coisas como:

  • Detetar que a forma como o telhado está desenhado não é adequada e pode deixar entrar água.
  • Detetar que o projeto tinha alguns pontos de rede com mais de 100m de cabo.
  • Avaliar os pormenores de soleiras para que não deixem passar água (é assustadora a falta de capacidade de muitos projetistas para desenhar um elemento tão básico mas tão importante num edifício).
  • Perceber que faltam válvulas ao esquema hidráulico de uma central de bombagem.

Todos os pontos que refiro são exemplos concretos de exigências que já vi serem feitas ao empreiteiro (depois de feitas e de terem dado problemas).

Será legítimo atribuir à preparação de obra a responsabilidade por esta verificação?

Considerações finais

O ponto que pretendia mostrar com este artigo é que uma coisa aparentemente simples e comum em todas as obras não é minimamente clara quando analisada com atenção. Todas as áreas de fronteira que referi em cima dão azo a discussões e tensões em obra, algumas com implicações fortes no andamento dos trabalhos e no custo da obra.

Não há uma resposta certa e universal sobre a responsabilidade da preparação de obra. De cada vez que assisto a projetistas e empreiteiros a discutir o tema em obra com recurso a afirmações absolutas como “esta responsabilidade é da preparação”, “esta responsabilidade é do projeto”,  “sempre trabalhei assim”, “nunca trabalhei assim”, “toda a gente sabe” arrepiam-se-me os cabelos (e para quem conhece a minha situação capilar facilmente atesta que isso não é nada fácil :-).

É fundamental percebermos muito bem o que está em causa, e termos a consciência que o tema é complexo e não há resposta absolutas. 

Tampouco faz sentido dizer que há interpretações da função da preparação de obra que defendem mais o projetista ou defendem mais o empreiteiro. Ou que há posições certas e outras erradas. 

O que interessa, no final, é defender o projeto.

A única forma de o fazer é assegurar que tanto a contratação de projetistas como da obra estabelece estes princípios de forma semelhante e compatível. E que fique claro para todos, em determinado projeto, onde termina a responsabilidade de uns e começa a de outros, para que todos consigam estabelecer as suas equipas e honorários de forma a assegurar o nível de serviço que lhes está a ser solicitado para determinado projeto.

Jaime Quintas

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